O PESQUISADOR E A HISTÓRIA
Segundo Capistrano de Abreu, Tobias Monteiro tomou gosto pela história do Segundo Reinado ao escrever sobre a queda do regime e a proclamação da República. Nascido em Natal em 1866, à época da implantação da República Tobias Monteiro era um jovem de 23 anos e cursava medicina no Rio de Janeiro. Chamado logo a seguir por Rui Barbosa, primeiro ministro da Fazenda do novo regime, para cuidar de sua correspondência pessoal, abandonou o curso de medicina e, contrariando a prática da época para pessoas de sua posição social, não se formou em nenhuma carreira de prestígio.
Da experiência de secretário do ministro da Fazenda, veio-lhe sem dúvida a motivação para escrever o livro Funcionários e doutores, publicado em 1916.1 A razão dessa conclusão é que boa parte da correspondência passiva do ministro, para ser exato, 40% dela, compunha-se de pedidos de emprego ou de promoção, em benefício do missivista ou de algum protegido seu. Os pedidos eram feitos pelas pessoas mais variadas, a começar pelo presidente da República, Deodoro da Fonseca, sua mulher, dona Marianinha, o vice-presidente Floriano Peixoto, colegas do ministério, amigos, funcionários públicos, gente comum. Funcionários e doutores é um contundente libelo contra os males do funcionalismo. Fun cio - nários e doutores, segundo o autor, formariam uma casta inútil que vivia à custa do Estado, legislava em causa própria e devorava, em alguns ministérios, mais de 80% do orçamento.
O jornalismo e a política tornaram-se, então, a principal ocupação de Tobias Monteiro. Durante o período florianista, amargou, assim como Rui Barbosa, um período de exílio, em seu caso passado em Buenos Aires. Ao regressar, passou, por mãos do mesmo Rui, a colaborar no Jornal do Commercio. Antes, já colabo - rara no Diário de Notícias. A política o convocou de novo em 1898, quando Campos Sales, eleito presidente, decidiu fazer uma viagem à Europa e o convidou para o acompanhar como secretário particular. Tobias acumulou durante a viagem o cargo de secretário e de correspondente do Jornal do Commercio. Dessa nova experiência, resultou o livro O Sr. Campos Salles na Europa: notas de um jornalista.
O interesse de Tobias Monteiro pela história parece ter sido despertado por um trabalho jornalístico solicitado pelo diretor do Jornal do Commercio em 1897. Tratava-se de fazer um inquérito, como se dizia na época, hoje seriam entrevistas, sobre a situação financeira do país, ouvindo autoridades no assunto. Um dos entrevistados foi o visconde de Ouro Preto. A partir dessa experiência, segundo Eloy de Souza, Tobias Monteiro começou a se interessar pela história política, visando de início os acontecimentos recentes da queda do Império e proclamação da República.
Ele se tornou, assim, historiador praticando o que hoje se chama de história oral, isto é, o uso de depoimentos colhidos em entrevistas pessoais. Uma vez decidido a fazer história, começou a entrevistar pessoas mais velhas, antes que a memória lhes falhasse ou a morte os calasse. Entrevistou sobre o 15 de Novembro o mesmo visconde de Ouro Preto, presidente do Conselho de Ministros em 1889. Do barão de Lucena, colheu informações sobre o golpe de 1891 desfe - cha do por Deodoro e sobre a renúncia do primeiro presidente. Ampliou depois a lista de entrevistados incluindo protagonistas mais jovens, como o tenentecoronel
Mallet, de quem ouviu o relato dos momentos dramáticos vividos pelo militar durante o embarque de D. Pedro II na lancha que levaria o imperador deposto ao Parnaíba.
Atraído pela história do Segundo Reinado, como disse Capistrano, passou a ouvir outros políticos do antigo regime a propósito de episódios como a aprovação da lei do Ventre Livre, a eleição direta, a Questão Militar. Publicou os primeiros resultados dessas pesquisas no Jornal do Commercio. Em 1913 reuniu os estudos em um livro, Pesquisas e depoimentos para a história, publicado pela Francisco Alves.
A experiência das entrevistas serviu também para alertá-lo sobre a dificuldade do trabalho do historiador, sobretudo no que se refere à confiabilidade das fontes. Um de seus entrevistados, testemunha ocular dos acontecimentos, informou ter ouvido relatos totalmente divergentes de outras testemunhas dos mesmos eventos. O fato levou-o a fazer um agudo comentário na introdução a Pesquisas e depoimentos: “É por isso que a gente fica a pensar se a história não será em grande parte um romance de historiadores. É possível que até os próprios atores, sobretudo depois de alguns anos, possam alterar inconscientemente as coisas de que melhor acreditem lembrar-se” (p. 6). Conseqüência imediata dessa cons - tatação foi perceber a necessidade de ouvir versões distintas e, sobretudo, de recorrer, como complemento aos depoimentos, a fontes impressas guardadas em arquivos públicos e privados, matéria-prima típica do trabalho dos historiadores.
Parte da documentação escrita lhe foi parar à mão gratuitamente, como os papéis do barão de Penedo, avô de sua mulher. Outros documentos ele os comprou, como o arquivo do visconde do Uruguai. De outros, fez cópias. Explorados os arquivos brasileiros, passou aos europeus, onde copiou ou fez copiar centenas de documentos, retirados, sobretudo, da correspondência enviada a seus go - vernos por diplomatas estrangeiros residentes no Brasil. Particularmente valiosa para seus estudos foi a correspondência dos representantes da Inglaterra, Áustria e França, países a que o Brasil se ligava estreitamente por laços econômicos, políticos e dinásticos.
Tudo isso, compra, cópias, viagens, custava caro e Tobias Monteiro não tinha as vantagens de outros historiadores, como Varnhagen, cuja carreira diplomática muito lhe facilitava a consulta de arquivos europeus. Não era também funcionário público, nem exercia carreira de prestígio. Como agravante adicional, tinha fama de pão-duro. Mas seu talento lhe valeu alguns bons empregos além do jornalismo, como o de secretário do Centro Industrial, consultor de firmas estrangeiras e diretor de banco. A paixão pela história parece ter vencido a sovinice, levando-o a gastar parte da fortuna na formação de seu acervo
documental.
Na Europa, visitou duas vezes o castelo d’Eu em busca de documentos sobre a família imperial. Farejou a existência da correspondência de D. Pedro II com a condessa de Barral. Dom Pedro de Orléans e Bragança, filho da princesa Isabel, prontificou-se, em 1927, a consultar a família da condessa sobre essa documetação. Ouviu como resposta que havia “malas, com papéis, no forro da casa; mas não sabiam o que eles eram”. Mas em 1925 Tobias Monteiro já sabia da existência das cartas. De algum modo, conseguiu ver e copiar cerca de 20 delas e as mostrou a Mozart Monteiro, seu colaborador. Mas não lhes deu publicidade. Achava que iriam “comprometer a proverbial austeridade do monarca”. Tobias não era monarquista, mas, segundo Mozart Monteiro, respeitava os homens do Império, a começar por D. Pedro II. As cópias fazem hoje parte de sua coleção.
Entrevistas e documentação arquivística resultaram em grande volume de informações. Publicados os primeiros estudos em Pesquisas e depoimentos, Tobias Monteiro voltou-se para a tarefa de escrever a história imperial. Segundo o depoimento de Capistrano, seu interesse inicial seria apenas escrever a história do Segundo Reinado. Em carta que lhe escreveu Julio Fernández de Buenos Aires em 29 de março de 1920, o missivista comenta aprovadoramente comunicação de Tobias Monteiro sobre “o propósito de escrever a história de Dom Pedro II e seu reinado”. 7 Essa é também a impressão que se tem lendo a introdução a
Pesquisas e depoimentos. Nela, o autor diz que a Independência, o Primeiro Reinado, a Regência e parte do Segundo Reinado já tinham sido estudados, mas quase tudo estava por fazer para o período posterior à Guerra do Paraguai.
Pode-se presumir que a riqueza da documentação colhida o tenha levado a optar por algo muito mais ambicioso, escrever a história completa do Império. Seja qual for a razão, o fato é que ele alterou os planos iniciais. O primeiro volu- me publicado, dedicado ao estudo da Independência, trazia como título geral “História do Império”. Em nota, o autor anunciava os próximos volumes sobre o Primeiro Reinado, a Regência e o Segundo Reinado. Segundo informou a Josué Montello, planejava uma série de sete volumes.8 Talento e dedicação para realizar a tarefa não lhe faltavam. O talento era reconhecido pelo historiador de maior autoridade da época, Capistrano de Abreu, que tinha grande expectativa quanto à projetada história do Segundo Reinado. Escreveu em sua correspondência, referindo-se a dois outros historiadores que melhor tinham estudado o período, Varnhagen e Oliveira Lima: “Tobias é mais inteligente do que qualquer dos dois e pode aprontar produto notável”.
Tobias Monteiro destinou quase toda a sua vida a pesquisar e escrever a história do Império. Solteirão e rico, dispunha de tempo para as longas pesquisas em arquivos e na Biblioteca Nacional, onde Josué Montello o conheceu, miúdo, falando baixo, pisando macio, tomando notas nos fundos da sala, em mesa que dá para a Rua México. Começou pelo começo, publicando pela Briguiet, em 1927, A elaboração da Independência, um grosso volume de 869 páginas.10 O primeiro tomo sobre o Primeiro Reinado apareceu 12 anos mais tarde, em 1839, pela mesma editora.11 Eram mais 448 páginas. O segundo tomo, que completava a história do Primeiro Reinado, saiu, ainda pela Briguiet, em 1946, com 374 páginas. 12 A partir daí, se não lhe faltaram talento e dedicação, faltou-lhe a saúde.
Não conseguiu ir adiante. Por ocasião da publicação do último tomo, achavase quase incapacitado para completar a grande obra que sonhara. Nada escreveu sobre a Regência. Sobre o Segundo Reinado, restaram apenas os estudos incluídos em Pesquisas e depoimentos.
Segundo Mozart Monteiro, que fora seu colaborador na década de 1920, em 1940 a saúde de Tobias Monteiro já começara a deteriorar. Nesse ano, o historiador recorreu a seu antigo colaborador, solicitando novamente sua cooperação. Mozart Monteiro disse-lhe não poder aceitar a tarefa porque sua visão já não lhe permitia enfrentar o trabalho. Pode-se perguntar se a delicada recusa não se deveria também à constatação de que, dado o estado de saúde do historiador, a cooperação significaria na realidade enfrentar o maior peso da tarefa. Nos últimos anos de vida, Tobias Monteiro teria padecido, segundo Mozart Monteiro, de “confusão intelectual”, possivelmente alguma forma de Alzheimer.
José Murilo de Carvalho.