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A vida partidária no Império

  • José Camilo de Oliveir Torres
  • 22 de nov. de 2016
  • 21 min de leitura

§ l.° — O mecanismo dos partidos

A vida partidária do Império fundava-se numa delicada confluência de situações diversas. Importa analisar com realismo, quase com crueza, os fatos para que possamos compreender a realidade, indo além da fórmula.


A Constituição, além de fazer todos os poderes “delegações” da soberania nacional, atribuiu ao Imperador, com primazia, e a Assembléia Geral, a dignidade e função de “representantes” desta soberania. Êste deve ser o ponto de partida para a análise da realidade política do Império, seu ponto de partida jurídico. A distinção entre representação, delegação e expressa designação pelo corpo eleitoral (que não foi, propriamente, invenção da Constituição do Império e era defendida por muitos autores na época), de qualquer modo, não deixava de ter o seu interesse teórico e prático.


O tema, em si mesmo, é complexo e até hoje provoca debates, inclusive pelo fato de haver quem conteste qualquer tentativa de identificação entre o conceito de representação em Direito Civil e em Direito Público. Mas, partindo do princípio de que representante é uma pessoa que assume a palavra no lugar de outra, na defesa de seus interesses, e como a Constituição, o pacto fundamental da nação brasileira, atribuiu perpètuamente tal delegação ao Imperador, juridicamente Sua Majestade Imperial era o primeiro representante da nação brasileira.


Era o texto constitucional — a lei. Aliás, os tratadistas reconheciam claramente que o Imperador somente obrava como representante no exercício das funções do Poder Moderador.


Os conservadores nunca saíram desta posição estritamente fiel ao espírito e à letra da Constituição: o Imperador como primeiro representante da nação.


E a partir daí vemos a sistemática relativa à sucessão hereditária, que fazia de cada devolução da Coroa um ato ratificado pela Assembléia (basta estudar a doutrina contida nos sete primeiros parágrafos do artigo 15 da Constituição): a nação, por seus representantes atuais, confirmava, em cada caso, a transferência da representação perpétua atribuída ao Imperador.


O outro representante era a Assembléia — esta era eleita. E aí temos um problema complicado — a dúvida entre a legitimidade de fato e a legitimidade de direito. No caso do Imperador era óbvio — normalmente nunca surgem dúvidas quanto à legitimidade do monarca num regime hereditário — e esta a sua vantagem mais evidente: sabemos, sempre, quem é o rei.


Ora, quando estudamos o problema eleitoral devemos considerar a situação real do país: o Brasil, despovoado, quase todo agrário, com terríveis dificuldades de comunicações. O povo do Brasil era um tecido tênue de malhas invisíveis: somente a máquina policial montada pelo gabinete de 23 de março que fazia do ministro da justiça “generalíssimo da Polícia e da Guarda Nacional”, estabelecia por assim dizer um esqueleto para aquêle organismo de panos flácidos e lassos.


A província de Minas Gerais, pelo relativo equilíbrio entre a população urbana e a rural de certo modo fugia à regra — e daí a dualidade permanente de partidos em Minas, daí a força do Partido Liberal, mais forte nos centros urbanos, graças à participação do comércio, profissões liberais e artesanato.


A história eleitoral do Império pode ser dividida em três fases.


De início temos a fase anterior à_adoção do gqvêmo de _ gabinete. As leis eleitorais, vindas no ano da Independência, eram francamente absurdas, mas acontece que não havendo “govêrno de maiorias”, como se dizia então, nem partidos, cada eleitor votando segundo suas preferências pessoais e os deputados constituindo blocos livres, dentro aliás, da teoria primitiva da divisão de podêres e do govêrno representativo, o resultado geral da eleição não interessava diretamente a ninguém. Basta fixar este ponto: cada deputado votando a respeito de cada caso, de acordo com a sua opinião pessoal ou, no máximo, de seus constituintes, não havendo o voto partidário, de bancada, como acontece, hoje, por toda parte, pouco importava o resultado geral da eleição.




Não havia, aliás, resultado geral da eleição. Podia o governo de fato, apoiar ou combater um ou outro deputado individualmente; mas em conjunto, o problema não se apresentava. Esta foi a situação até 1847.


Com a adoção do govêrno de gabinete, esta passou a ter uma política no parlamento, e começou a surgir o problema de como constituir uma verdadeira maioria. Aliás, nas eleições ocorridas na época da Maioridade o problema já se punha — nasciam os partidos e a política começava a ser feita em grupo, o deputado votando com o seu partido. Mas, coube a Alves Branco uma triste primazia — iniciar a política das “derrubadas”, isto é, a de substituir agentes de autoridade do partido adversário pelos próprios, a fim de garantir o pleito.


O problema, aliás, era o seguinte: dadas as condições sociais no interior do país, o grave problema eleitoral era o da “qualificação”, isto é, do alistamento. O partido que controlasse as autoridades policiais ganhava as eleições, por um processo muito simples: impedindo que os adversários se qualificassem, se alistassem.


Depois da lei Saraiva, que estabeleceu um alistamento permanente, feito pela magistratura, a situação mudou oonsi- deràvelmente. No fim do Império as eleições eram quase satisfatórias.


A lei Saraiva, cujo prestígio, na época, advinha da eleição direta (um exemplo do entusiasmo que provocam certas fórmulas em si mesmas vazias de sentido), mas cuja importância real estava no alistamento prévio, nos distritos homogêneos de um só deputado e no restabelecimento do censo alto, foi altamente vantajosa para o Partido Liberal que a fêz. Graças ao distrito uninominal, criava comunidades de vizinhança e perxnitia que um indivíduo de prestígio numa área definida se elegesse, usando de processos diretos de propaganda; até muito pouco tempo, somente os candidatos do governo podiam ser eleitos em áreas eleitorais extensas, pelo controle de eleitorado de cabresto.


O regulamento Alvim, que conseguiu a unanimi- 1 dade republicana da Constituinte de 1891 usou, principalmente, do processo do baralhamento de zonas eleitorais — Caratinga e Ouro Preto, ou Itabira e Diamantina, votando nos mesmos deputados... O importante da medida estava, principalmente, na separação entre colégios urbanos e rurais; facilitando decisões variáveis. Assim, Joaquim Nabuco, com a sua pregação socialista, elegeu-se deputado pelo Recife, não obstante a solidez escravocrata do interior da província.


O censo alto (e Tavares Bastos tinha consciência disto, como se pode ler da argumentação em defesa de seus projetos de reforma eleitoral)(1) valorizava o eleitorado urbano, fazia os colégios urbanos supra-representados: na roça votavam quase só os fazendeiros; nas cidades quase todo mundo. O Partido Liberal ganhou todas as eleições realizadas em Minas sob os auspícios da grande lei.


De modo que, volvendo ao começo, se a representação atribuída ao Imperador era evidente por si mesma, notória e fora de discussão, a representação atribuída à Assembléia era passível de dúvidas. Até hoje há muitas discussões a respeito da legitimidade dos pleitos.


O resultado é que o gabinete, sendo responsável perante a nação, podia sê-lo perante um ou outro dos seus representantes. D. Pedro II, conforme muitos depoimentos pessoais, e os fatos o confirmam, preferia que esta responsabilidade se fizesse unicamente perante as câmaras, e somente três vêzes usou de seu poder de maneira direta. Mas, legalmente, o Poder Moderador possuía até precedência sobre a Assembléia como órgão da representação nacional.


Mas, representando o Imperador as razões nacionais e a Assembléia os interêsses seccionais, era lógico atribuir-lhes as decisões concretas sobre as medidas de conveniência nacional em face de cada caso concreto. 1


O fato é que, se a Constituição facultava ao Poder Moderador escolher quem quisesse para presidente do Conselho do Ministros, este alguém não poderia governar sem: a maioria da Câmara, como, aliás, demonstrou muito bem Zacarias — a Constituição, apesar das aparências, introduzira o parlamentarismo.


O que os presidentes de conselho não podiam fazer (era o segundo têrmo do sorites de Nabuco, tão bem dissecado por Heitor Lyra)(2) e faziam, era utilizar a máquina policiale administrativa para arrancar das províncias as maiorias que_os apoiassem^ E neste capítulo — liberais e conservadores com alguns casos raros de lisura, levaram para o túmulo graves pecados. Poucos os políticos brasileiros que, até hoje, conservam a inocência batismal nesta matéria.



O problema político do Império pode ser resumido do seguinte modo: havia govêrno de gabinete e, portanto, go- vêrno de “maiorias”, não obstante todos os protestos conservadores em contrário., Para conseguir êste resultado, os presidentes utilizavam-se da máquina policial das províncias, dentro / da fórmula do sorites de Nabuco. A respeito da interpretação parlamentarista de Zacarias, convém repetir o que disse o grande estadista baiano:


“A Constituição que declara os podêres políticos delegações do povo, a Coroa impecável, os ministros responsáveis, a Constituição que, conferindo ao chefe de Estado u nomeação dos ministros, dá às câmaras, principalmente à temporária (pelo voto do imposto e do recrutamento) o direito de recusar-lhes meios de existir, essa Constituição, qualquer que seja, confere às câmaras (e com especialidade a (‘letiva) uma justa participação no govêrno do Estado, ou por outros têrmos, estabelece o govêrno parlamentar”.


Quer dizer: era impossível o funcionamento do regime sem o “govêrno das maiorias”. Zacarias foi ao cerne da questão e a colocou com uma clareza meridiana — e o malogro de D. Pedro I, a tragédia de Feijó (e muitos problemas surgidos depois de 1889) nasceram da impossibilidade prática da separação de podêres emestiloclássico: o órgão diretor do govêrno (no caso do Império, a Presidência do Conselho) faz corpo com a maioria da Câmara, dirigindo-a diretamente, ou nada funciona,


Mas, dadas as condições sociais do Brasil, o mecanismo necessário à formação destas maiorias, seguiria o rito do famoso sofisma que Nabuco de Araújo lançaria em protesto contra a constituição do gabinete Itaboraí.


Eis o que diz o senador Nabuco:

“O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios: esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la e esta eleição faz a maioria.”


Sim, as coisas funcionavam desse modo. Mas, onde estava a raiz do mal ? Heitor Lyra, o sólido biógrafo de D. Pedro n, com muita lucidez e compreensão da realidade política e social do Império, analisa o sorites e mostra o seu ponto fraco: a ação eleitoral dos presidentes de província.


“Êste raciocínio era, sem dúvida, exato, quer dizer, todas as suas proposições de fato se verificavam. Mas, convinha indagar: era por culpa do Imperador ? Por culpa da Constituição ? ou por culpa da escassa cultura das massas eleitorais ?”


“Se as proposições que formavam o “sorites de Nabuco” se verificavam de fato, uma delas, pelo menos, de direito, era falsa e tirava, assim, ao sorites, todo o fundamento legal. Os presidentes de província, dizia Nabuco, faziam as eleições. De fato, assim era: os presidentes de província faziam bem as eleições, a mando e sob o controle dos gabinetes, qua fabricavam eles mesmos as câmaras, as quais, teoricamente, os deviam sustentar. Mas, onde estava o fundamento legal da atribuição que se arrogavam os presidentes de província, de fazerem as eleições ?”


Afinal, conclui Heitor Lyra, se fossem outras as condições sociais, o eleitorado reagiria livremente, sem se preocupar com a influência do governo.

De tudo isto inferimos duas conclusões:

a) os presidentes de Conselho tinham as províncias como seu campo de ação; b) o Poder Moderador nada mais podia senão fazer e desfazer os gabinetes, sem qualquer atuação, já que o presidente de Conselho era o autor das eleições e, pois, das câmaras suas.



A primeira consequência era política e estava ligada à rsl rutura da organização provincial, a segunda era social e rs In va ligada à situação eleitoral.


A orgajiização provincial não constava da Constituição; vrio com o Ato Adicional e com a lei de 3 de outubro de !H:M. Como resultado, o paradoxo de possuírem as províncias Poder Legislativo próprio e de enormes proporções, com prerrogativas não inferiores às atuais, mas com o Poder Administrativo competindo a um representante do governo geral^ nomeado pelo Poder Executivo,, criatura dos presidentes de Conselho, pois, c que tinham sob suas ordens os serviços públicos da província,, quer os pròpriamente provinciais, quer os relativos ao Covôrno Geral.j Convém recordar que existiam repartições específicas para cada caso, como, por exemplo, uma tesouraria pum arrecadação das rendas provinciais e, outra, para as rendas gerais, oom funcionários pertencentes a quadros administrativos separados.


Estavam, pois, sujeitos aos presidentes de província todos os serviços públicos nas províncias, inclusive a defesa nacional e a magistratura., E se, relativamente aos serviços públicos gerais eram elementos de ligação entre o govêmo geral e os órgãos locais, i^no que concerne a serviços1 provinciais ou semi- pmvínciais, como a polícia, decidiam êles soberanamente.


Pura que se tenha uma idéia, daremos, em seguida, um quadro resumido das relações entre os presidentes de província r os demais órgãos, superiores e inferiores, da administração geral, não interessando, para a nossa análise, a sua ação pura- inrNlo provincial.


Um precioso livrinho do conselheiro José Caetano de Andrade Pinto — Atribuições dos presidentes de província — ulcroeo-nos um copioso material sobre a questão das presidências, como delegações do governo central, além das funções que lhes competiam no exercício do poder executivo provincial.


Em princípio, o expediente de cada ministério com seus órgãos provinciais se fazia por intermédio do presidente, delegado geral, de cada Secretaria de Estado e de todo o Ministério na sua circunscrição. Com isto, exercia funções de vigilância e inspeção sobre todos estes órgãos, com poderes amplos e definidos. Chefiando, ademais, a administração provincial, o presidente unificava todos os serviços públicos na província que, assim, andavam, pelo menos em teoria, equiparados e harmônicos.


Estudaremos alguns aspectos, relativos a três secretarias de Estado, serviços que, melhor do que outros, refletem a importância dos presidentes no quadro político da monarquia brasileira.


Lugar de especial destaque, caberia, por certo, ao Ministério dos Negócios do Império, por onde corriam todos os assuntos “interiores”. Andrade Pinto considera as seguintes seções: eleições, câmaras municipais, culto público, socorros públicos, instrução pública, títulos e condecorações, naturalizações, desapropriações. A simples enumeração desses tópicos revela um mundo de atribuições infinitas. Sobre as eleições (e bastaria isto...) citemos duas observações do douto magistrado.


“Os presidentes de província provisoriamente conhecem das irregularidades cometidas nas eleições municipais e mandam reformar as que contiverem nulidade, quando da demora possa resultar o inconveniente de não estarem os eleitos no dia designado pela lei”


Ou, então:

“Os presidentes são competentes para decidirem as dúvidas que lhes forem apresentadas a respeito da lei de eleições, levando a sua decisão ao conhecimento do governo, assim como a este remeterão as reclamações e requerimentos que, para esse fim, lhes tiverem sido apresentados” (5 6). Só isto é suficiente para explicar como, da mudança de gabinetes, teríamos a alteração dos resultados das eleições. A simples presença física do presidente adversário, mesmo que nada fizesse de positivo, insinuaria prudência à oposição.. . Como, porém, os partidos altemavam-se no poder graças à presença do Poder Moderador, o ostracismo sofria com ânimo esperançado: hodie mihi, eras tibi.


Sobre câmaras municipais, citemos Andrade Pinto.

“Aos presidentes de província, como primeiros administradores delas, são as câmaras municipais subordinadas”


Elemento de ligação entre o governo e as autoridades eclesiásticas (na Regência nomeavam os párocos), dirigentes dos serviços de saúde e assistência, controlando a instrução, malária pacífica, informando processos de títulos e honrarias, dando parecer sobre naturalizações e desapropriações, era onímodo o poder dêstes “procônsules”, como tão bem os definiu o Sr. Heitor Lyra.


Vejamos o Ministério da Justiça. Diz Andrade Pinto e só isto basta:

“a independência do Poder Judiciário não exclui que os presidentes, como supremos administradores, tenham direito de ser informados dos negócios da administração da Justiça”


Aliás, em seus relatórios apresentados à Assembléia, expunham minuciosamente a situação relativa à Justiça, muito embora fosse matéria de competência nacional. Já a polícia pertencia aos presidentes: o chefe de polícia provinha de nomeação do govêmo central, mas os delegados cabia aos presidentes escolher, por indicação dos chefes de polícia.


Capítulo de importância essencial é o relativo à Guerra, pois sentimos nos dispositivos da legislação em vigor, perfeitamente inócuos em seus primórdios, um dos fundamentos da crise que destruiria o regime. Citemos o prestimoso Andrade Pinto:


“Os presidentes são superiores aos comandantes das Armas, que lhes devem subordinação e inteira sujeição em todos os objetos da adminis- Inição, que nada têm com a disciplina e a economia da tropa”

“Pela Secretaria da Guerra são remetidas aos presidentes as ordens cio dia do ajudante-general, a fim de que os mesmos presidentes cumpram as disposições que contiverem ditas ordens acerca da força estacionada nas províncias’^


Podiam, também, conceder licenças oficiais e cuidavam do recrutamento. A Marinha, por outro lado, ficando no mar, estava sujeita diretamente ao ministro e, portanto, mais próxima da “fiscalização” imperial.


A conSeqüência deste dispositivo era de presumir-se: a participação das guarnições nas lutas políticas locais, tanto assim que ninguém poderá entender o 15 de Novembro sem ter diante de si a posição de Gaspar da Silveira Martins na política rio-grandense. Deodoro pensava mais, muito mais, no tribuno gaúcho do que no velho Imperador, quando pôs a “procissão” na rua.


A importância dos presidentes, como órgãos políticos, nasceu do fenômeno que iria caracterizar a segunda metade do século: o aparecimento da figura do presidente de Conselho de ministros, responsável pelo funcionamento do Poder Executivo, com a redução do Imperador, a órgão meramente fis- calizador, com o direito correspondente, de negar a confiança ao gabinete e mais o recrudescimento da política partidária. Com isto, entre a magistratura neutra e suprapartidária do Imperador, Generalíssimo nato, e o Exército, passara a existir a figura do presidente do Conselho de Ministros, chefe de partido, com o seu agente, o presidente de província, que podia manobrar à vontade sem dar atenção às queixas imperiais.


Eis aí o quadro em que se encaixa a questão militar

Uma análise da situação dá-nos o seguinte quadro:

a) as províncias gozavam de ampla autonomia legislativa nas matérias de seu peculiar interesse, em bases equivalentes às atuais, autonomia que se verificava sem interferência do Executivo a não ser através do veto; b) havia uma administração especificamente provincial, dirigida, no entanto, por um presidente escolhido pelo governo imperial;

c) os serviços “gerais” igualmente subordinados ao presidente, eram bem descentralizados, pois os presidentes de província podiam decidir muitas questões atualmente atribuídas aos ministros; d) serviços públicos provinciais e gerais eram de tal modo articulados, graças ao chefe comum, que não havia paralelismo, superposição, repetição ou mistura de atividades. Em resumo: era uma política unificada, mas descentralizada.


Era, pois, quase ilimitada a ação dos presidentes de província. Graças a eles, os presidentes de Conselho faziam e desfaziam as situações políticas exatamente onde a política tinha origem: nas províncias. O corpo eleitoral nascia da vontade destes agentes dos chefes do governo


Vamos assinalar, com mais atenção, dois aspectos da ação onímoda dos presidentes de província.

O primeiro refere-se à polícia. O chefe de polícia dependia do governo-geral, estando sujeito ao Ministério da Justiça. Mas os delegados e subdelegados eram de nomeação dos presidentes de província, por indicação do chefe de polícia, homem, também, de seu partido. Como conseqüência evidente disto, os órgãos de base da polícia, cujo interesse é, até hoje, grandíssimo, dependiam, unicamente, do alvitre dos governos provinciais. O Imperador não podia exercer a sua "suprema inspeção”, nem o "lápis fatídico” teria aplicação. É facílimo sentir os resultados de semelhante situação. Dada a sua importância, veremos no fim este tema, com amplo desenvolvimento.


O outro aspecto liga-se à Questão Militar: o comandante de Armas de cada província estava sujeito ao seu respectivo presidente. \Como resultado ocorriam várias situações perigosas:


a) comandantes de Armas articulados à ação política dos presidentes e, pois, envolvidos, com a tropa, na política partidária; b) presidências ocupadas por elementos da classe militar, mas de posto inferior ao do comandante o que, fatalmente, criava situações embaraçosas para a boa disciplina e as normas hierárquicas;

c) animosidade política ou pessoal entre o comandante de Armas e os presidentes de província, o que gerava atritos perigosos.

E para que se verifique não terem caráter meramente acadêmico estas hipóteses, basta recordar que as duas últimas se deram em momentos decisivos da carreira militar de Deodoro da Fonseca, momentos que se tomaram também decisivos para a História do país.


O resultado é que, se os presidentes de Conselho governavam o país na totalidade de sua uniRãdê~sõbrã~vigilância do Imperador, administravam diretamente as províncias, por meio dos presidentes, isto de modo livre, ilimitado e sem qualquer fiscalização por parte do Poder Moderador. E “faziam” as eleições...


O que os críticos da situação, antigos e modernos, políticos e historiadores jamais sentiram perfeitamente é que o problema eleitoral, no cerne do “sorites de Nabuco” era_ antes social do que puramente político e legal.


Toda a argumentação do grande jurista perderia a sua consistência se as eleições fossem feitas pelo eleitorado e não pelo governo. Ou, antes, se houvesse um eleitorado que reagisse espontâneamente. Ora, para isto, impunham-se condições de ordem legal e institucional e, principalmente, social.


No primeiro caso, metade do problema foi resolvido pela lei Saraiva, não pela eleição direta, vantagem secundária e puramente formal, sem outro valor além de economizar uma etapa no processo eleitoral; o importante, o essencial, o verdadeiramente revolucionário, o que marcaria época e daria a Rui Barbosa a sua grande oportunidade na história do país, a sua conquista democrática, o que faria da lei Saraiva, no dizer de Sabino Barroso, o ponto de glória do Partido Liberal era algo de modesto na aparência, mas profundo em suas conse- qüências: lo título eleitoral.


A introdução do título eleitoral e, como resultado, a instituição de um eleitorado permanente, pondo fim à comédia das “qualificações”, estabilizou a vida política em bases sólidas. Foi o primeiro golpe de morte na ação dos presidentes de província e seus agentes locais, os delegados. Se as autoridades locais não mais podiam “fazer” o eleitorado, agora não lhes seria muito fácil “fazer” as eleições. Antes, votava quem o govêmo, vale dizer, os presidentes de províncias, queriam.


Agora, o eleitor, uma vez alistado, com a devida antecedência, o seria até a morte. O corpo eleitoral do Império, dividido em duas correntes, passou a ter existência permanente, e que permitiu, afinal de contas, o comparecimen- to às umas de eleitores liberais e conservadores.



Faltava, todavia, uma condição para que as eleições fossem realmente livres, e os eleitores pudessem comparecer todos e todos votarem de acordo com a sua consciência: que as autoridades, principalmente policiais, fossem isentas. Trata-se de uma nobre aspiração que, hoje, encontra numerosos adeptos, mas que não fazem maioria. Ainda é um longínquo ideal...



Mas o liberalismo latente dos políticos do Império e de muitos, até hoje, no fundo adeptos de Rousseau, impedia (e impede, esta a verdade) ver as condições sociais que perturbam o processo eleitoral. A existência de pressões sociais e econômicas muito fortes dificulta ao eleitor ter a mera idéia de uma escolha entre duas decisões que se lhe apresentem em igualdade de condições diante dos olhos. O que a maioria faz é cumprir as ordens daqueles sob cuja dependência econômica vivem.


Sem a convivência entre pessoas de mesma classe, mas sujeitas a emprêsas diferentes e entre pessoas de residência diversa e variada condição econômica, sem a existência do “povo”, como aglomerado mais ou menos urbano de pessoas de dependência diversa e de horizontes diferentes, impossível a vida democrática. A democracia pressupõe o “povo”, uma entidade urbana: sem a cidade e as relações de interferência que a vida policiada oferece, impraticável é a democracia. Afinal, a política tem a sua radical em polis o que explica muita coisa, mais do que uma etimologia ocasional. A urba- | nização e a libertação do eleitorado, como o demonstrou o Prof. /Orlando M. Carvalho, são dois processos interligados.


Num país despovoado e de estrutura agrária, não há melhor meio de coerção política como a polícia, o que, aliás, é evidente. E num país demogràficamente rarefeito, num tempo em que os partidos políticos hierarquizados e administrativamente organizados não existiam, aqui, ou em outro lugar qualquer, o único instrumento de ação de caráter universal, indo do govêrno central ao “quarteirão”, era a polícia.


A organização do aparelho policial do Império, fortemente centralizado, justificava-se por várias razões:

a) a necessidade dereafirmar os laços de autoridade, naturalmente frouxos, estendidos que eram sobre grandes áreas despovoadas, para que a autoridade se fizesse sentir “do Amazonas ao Prata”, num país de fazendas e vilas insuladas nos sertões sem fim, os laços careciam ser fortes sob pena de não chegar a palavra de ordem até os mais distantes rincões;

b) defesa das instituições, pela generalizada expansão da autoridade; os princípios da Constituição não se aplicariam uniformemente em todo o país se não houvesse uma autoridade única e forte para mantê-la; a história do racismo nos Estados Unidos da América, acobertado pelas franquias estaduais, confirma o pensamento do visconde de Uruguai: sem a centralização não haveria a igualdade; c) substituição das autoridades facciosas por outras imparciais; esta razão, sempre invocada por Uruguai, era ilusória: políticos parciais podem nomear autoridades tão facciosas como as que saem de eleições;

d) interêsse político: todos os governos precisam de meios de ação direta, a centralização seria o meio natural pelo qual se processaria a ação partidária.


Estas as razões que levaram os estadistas imperiais a adotarem em 1841_nova organização policial, em substituição à descentralização da polícia eletiva que funcionara durante o período regencial e que todos reconheciam como um indiscutível fermento de desordem.


Não vamos estudar aqui, em detalhe, a organização policial do Império, e, sim, acompanhar a sua adoção, seguindo em tudo, a orientação do estadista que a impôs: Paulino José Soares de Sousa, visconde do Uruguai.


É uma história simples: os liberais maioristas, alijados subitamente do poder, foram substituídos pelo que havia de mais tipicamente “saquarema”, num governo, aliás, que tinha Bernardo Pereira de Vasconcelos como seu verdadeiro líder. Vasconcelos não participava do governo, mas dirigia toda a política do gabinete, principalmente por intermédio de seu “discípulo político”, o visconde de Uruguai que ocupava a Pasta da Justiça.


Até então vigorava o Código do Processo Criminal do Império, que adotava uma verdadeira polícia eletiva. Em seu lugar, Paulino colocou um sistema policial caracterizado pela existência de um chefe de polícia nomeado pelo governo imperial e delegados e subdelegados nas localidades.} Graças a esta organização, o ministro da Justiça seria, como disse Tavares Bastos, o “generalíssimo da polícia e da Guarda Nacional”.


Para que possamos bem entender esta organização policial implantada em 1841 — e que foi uma das razões da revolução dos liberais mineiros, no ano seguinte, a “guerra de Santa Luzia”, convém estudar as razões da reforma que deu ao govêmo do juvenil D. Pedro II uma autoridade que iria até o fim. E graças à qual os presidentes de Conselho, remodelando periodicamente a máquina policial do país, podiam fazer e desfazer as situações políticas.


O ministério de 23 de março de 1841, o segundo do reinado de D. Pedro II, compunha-se de alguns elementos mais fortes da grei conservadora. Sentimos a presença da lavoura cafeeira do Vale do Paraíba e o começo do domínio “saquare- ma” que marcaria toda uma época. O Ministério da Justiça coube, como vimos, a Paulino José Soares de Sousa, mais tarde visconde de Uruguai e uma das mais notáveis cabeças de estadista que o Brasil conheceu.



Paulino aceitou a incumbência, porém, com uma condição: restabelecer a ordem e fundar a autoridade em bases sólidas. A Maioridade, se dava ao Estado um símbolo vivo e palpável, não significava, porém, um govêmo forte; a estrutura do poder perdia-se numa organização policial eletiva, grande autonomia das assembléias legislativas provinciais, que dispunham sobre todos os assuntos da província, reduzindo o govêrno imperial aos negócios do Município Neutro.


E o chefe do Estado, se era um símbolo vivo e concreto da autoridade, não passava de um menino, preocupado com seus estudos, inexperiente e mesmo pouco interessado em política. Não raro vemos em autores, antigos ou modernos, que tratam desta época e se referem a D. Pedro II, como se, de fato, exercesse qualquer influência direta na vida nacional... Evidentemente, isto não aconteceria.Paulino, assumindo o posto, escrevería em seu relatório estas palavras que marcam toda a linha do Regresso:


“Desde o ano de 1832 até agora, sempre coube aos meus antecessores a desagradável tarefa de anunciar, à Assembléia Geral Legislativa, o aparecimento de novos tumultos e comoções em várias de nossas províncias ou continuação e desenvolvimento dos que já tinham aparecido. Não tem aqui cabimento a reprodução dos fatos que vos narraram e das observações que os revestiram, e bastará para isso apelar para a memória. E nada há nisso que admire; os elementos que lhes deram causa não se extinguiram com eles; continuam a fermentar, fermentam ainda; produziram e ainda podem produzir grandes males se uma legislação mais forte e severa, executada por uma política firme, vigorosa e perseverante, ajudada de meios fortes e convenientes não conseguir sufocar o espírito de anarquia e desordem que tem feito aparecer, em diversos pontos do Império, as cenas de devastação que os tem assola- do”


A reforma do Código vinha de 1839, com projeto apresentado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, o que diz tudo. Agora, o jovem ministro da Justiça e o velho lidador, de mãos dadas, fiezram passar a reforma da Justiça e da polícia. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 30 de novembro de 1841, lei de 3 de dezembro. Em janeiro, o ministro regulamentava a lei, no famoso Regulamento 120. A argumentação de Paulino era seca e simples: antes, com juízes de paz responsáveis pela política, além de se faccionar a autoridade em mil centros dispersos, retirando ao Poder Central os meios de fazer valer a sua vontade, estabelecia o jogo das facções,



E com franqueza e agudo senso das realidades, em palavras de homem que não se deixa levar pelo som harmonioso das teorias grandiloqüentes, mas conhece o terreno onde tem os pés, bem fincados no solo, diz:

“As pequenas facções que nas localidades disputam as eleições (...) não cometem tantos excessos para que a eleição recaia no homem mais capaz de administrar justiça e mais imparcial; mas sim para que sejam eleitos homens de partido, mais decididos, mais firmes, mais capazes de cortar, por quaisquer considerações, para o servir e para abater e nulificar o contrário. E qual o resultado ? uma luta continuada, uma série não interrompida de reações, com que as paixões cada vez mais se irritam, que o governo não pode conter e de que, todavia, é sempre acusado”.E conclui: “Todo favor, toda a proteção para aqueles que os ajudam a vencer, toda a perseguição aos vencidos”


Paulino conseguiu, com a lei da interpretação do Ato Adicional — que transferiu para o Governo Central a Justiça de primeira instância — que uma interpretação liberal do Ãto Adicional passasse para as províncias, e com a lei de 3 de^ dezembro fundou a Justiça unificada e a polícia centralizada no BrasilJ Graças à legislação de 1841, as autoridades policiais deixaram de ser eleitas e passaram a nomeadas,


Mas, então, toda a máquina policial do país passou a ser revista a cada alternação de situação política. Paulino, esta a verdade, conseguira apenas a metade de suas aspirações: abolira a anarquia, é verdade, mas não conseguiu acabar com o espírito de facção: os delegados assim nomeados passaram a agentes do ^ partido dominante.) E, até hoje, em muitos Estados, as delegacias de polícia são preenchidas de acordo com os interesses e as necessidades das facções em luta.


Paulino compreendeu, esta a verdade, todo o interesse político de sua reforma.

“Pode por meio dela ser montado um partido, mas pode também ser desmontado quando abuse... Se quando o Partido Liberal dominou o poder no ministério de 2 de fevereiro de 1844, não tivesse achado a lei de 3 de dezembro de 1841, que combateu na tribuna, na imprensa e com as armas na mão, e na qual não tocou nem para mudar-lhe uma vírgula, se tivesse achado o adversário acastelado no sistema anterior ou teria caído logo ou teria saltado por cima das leis. Cumpre que, na organização social haja certas molas flexíveis, para que não quebrem quando aconteça, o que é inevitável, que nelas se carregue um pouco”


Maurras dizia que a democracia tende à centralização do poder. Todo governo eleito, para atender às necessidades das lutas eleitorais, procura reforçar o seu poder. Todo governo eleito é, afinal, instável e precisa agarrar-se a algo. Pode-se aplicar o pensamento de Paulino (e o de Maurras) ao caso dos presidentes de província: se fossem eleitos, cada partido se consolidaria em seu posto e as mudanças de gabinete não corresponderiam a uma alteração da situação política. Muito sagazmente, aliás, os políticos do Império, liberais ou conservadores, evitaram mudar o statu quo provincial.


Graças, pois, à organização poEcial montada por Paulino José Soares de Sousa, em 1841, que permitia fosse alterada de alto a baixo a cada mudança de gabinete, os presidentes de Conselho, por seus ministros de Justiça, tinham meios e modos de ganhar as eleições;.


Numa época em que as condições de liberdade efetiva eram mais precárias do que hoje, em virtude do caráter universalmente agrário da sociedade, quando não se adotara ainda um sistema de práticas eleitorais realmente garantidoras da liberdade eleitoral, que nasceria, realmente, com a lei Saraiva, que criou o eleitorado permanente ao atribuir à justiça a fixação do alistamento, numa época destas, o controle da polícia era tudoj Basta considerar as relações entre a polícia e as eleições hoje, e perceberemos que, na realidade, era por meio da polícia que os presidentes de Conselho “faziam” as eleições.


Aí está; esta a razão da grandeza e da fragilidade das instituições imperiais: j a preocupação de organizar um quadro político delicado e sutil, flor requintada de civilizações seculares, sobre o solo virgem de uma nação em começo...


Na prática, a fictio juris que fazia do Imperador o primeiro representante da soberania nacional, e da qual D. Pedro II possuía uma consciência muito viva (não era isto, pròpria- mente uma criação dos juristas da era liberal, mas uma velha noção que vinha da Idade Média) trouxe um resultado curioso: a nação, por seu imperial representante, escolhia os gabinetes... Como o Imperador procurava informar-se cuidadosamente por todos os meios (lia todos os jornais) ele se substituía, efetivamente, ao quase mítico corpo eleitoral. Adotava a linha política que lhe parecia ser a que o povo adotaria na hipótese de reagir livre e espontâneamente a uma opinião pública esclarecid...


O paradoxal é que tudo, afinal, dava muito certo...

Outro resultado curioso: a prática do Império coincidia com o ideal proposto por Assis Brasil, republicano e presidencialista, em suas sugestivas obras de ciência política.


 
 
 

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