Obrigado a embarcar de madrugada, o imperador navega no alagoas com a familia rumo ao exilio na Euro
- Roberto Dias Rolim
- 22 de nov. de 2016
- 11 min de leitura

"Como? Embarcar sem meus filhos que ainda estão em Petrópolis? Não sigo sem meus filhos", perguntava e protestava em desespero, quase, aos prantos, a princesa Isabel, 43 anos. Eram 2 horas da madrugada de domingo passado, dia 17. Reinava uma balbúrdia considerável no salão principal do velho solar do Paço da Cidade, no Rio de Janeiro. Meia hora antes, o tenente-coronel João Nepomuceno de Medeiros Mallet havia batido à porta do palácio e mandado acordar toda a família imperial. Falando em nome do governo provisório; Mallet queria que o soberano destronado, sua mulher, a imperatriz Tereza Cristina, sua filha, a princesa Isabel, seu genro, o conde D' Eu, e seus quatro netos embarcassem para o exílio naquele momento, no meio da madrugada em que caía um chuvisco frio sobre o Rio de Janeiro. O objetivo declarado dos republicanos era evitar que, num embarque durante o dia, simpatizantes mais exaltados do novo regime hostilizassem o monarca e seus familiares. O objetivo real era o oposto exato: tomar mais difícil que viessem à tona manifestações de solidariedade a D. Pedro II. Imaginando que poderia haver tumultos no Rio, Isabel e seu marido, Gastão de Orléans, o conde D' Eu (pronuncia-se à francesa: "Dê"), haviam enviado seus três filhos para Petrópolis na sexta-feira. Péssima ideia.
Mallet deu garantias à princesa de que um trem especial traria os três garotos - Pedro de Alcântara, 14 anos, Luís Felipe, 11, e Antônio Pedro, 8 - e guardas especiais seriam colocadas em todas as estações. Nem por isso Isabel se acalmava: caiu prostrada numa poltrona e lá ficou. Mallet contava com a simpatia do conde D'Eu, 47 anos, para conseguir que a família imperial embarcasse de madrugada, antes da chegada dos três meninos. Simpatia conquistada quando o conde se insinuou junto ao governo provisório para averiguar como ficaria a situação financeira da família real e os republicanos lhe prometeram uma doação de 5. 000 contos de réis. Resolvida a questão dos filhos de Isabel, restava ainda o mais difícil: convencer o imperador a embarcar. Usar a força para forçar o sexagenário e pacato monarca a sair do palácio era recurso que o governo não cogitava.
D. Pedro II levou bastante tempo para se aprontar e aparecer no salão do palácio. Entre severo e sereno, entrou na sala vestindo uma bem talhada casaca preta e segurando a infalível cartola na mão. "O que é isso? Então vou embarcar a esta hora da noite?", perguntou D. Pedro II ao tenente-coronel, "O governo pede que embarque antes da madrugada porque assim convém", respondeu Mallet. O imperador, que padece de diabete há dois anos, voltou então ao seu estado costumeiro - o que oscila entre o torpor, os lapsos de memória, a introspeção que o distancia da realidade e uns poucos surtos de irritação. "Que governo?", perguntou, embora no dia anterior tivesse até e escrito uma carta acatando a ordem do govermo para que saísse país. Quando o militar Ihe esclareceu que se tratava do governo republicano, o monarca fez outra pergunta se nexo: "Deodoro está metido nisso?". Paciente, Mallet disse que o marechal Deodoro era o chefe do governo provisório. "Então estão todos malucos", resmungou o soberano, para irritar-se em seguida: "Não sou negro fugido, não embarco a esta hora".
O almirante Artur Silveira da Mota, o barão de, Jaceguai, amigo da família imperial, ainda tentou ajudar Mallet a dobrar o imperador, dizendo que se temiam manifestações de estudantes. "E quem faz caso de estudantes?", irritou-se o deposto. Jaceguai ainda tentou adular o imperador, afirmando que todos sabiam que o monarca zelava pelo sangue do povo, e acabou levando uma bronca. "Tudo isso é obra da indisciplina do Exército e da Armada, que o senhor bem sabe e da qual tem alguma culpa", disse-lhe D. Pedro, referindo-se a uma assembleia que Jaceguai presidira três anos antes, na qual militares se solidarizaram com oficiais indisciplinados que Deodoro protegia. Desacorçoado o barão afastou-se para um canto.
Nesse momento, ouviram-se tiros lá fora. Mallet foi ver o que era e sobe que o major Sólon havia prendido quinze marinheiros, temendo que estivessem ali para prestar solidariedade ao monarca. O tenente-coronel voltou ao salão e tudo continuava na mesma, só que agora com a presença da imperatriz Tereza Cristina, 67 anos. Estavam todos prontos para partir, mas ninguém se mexia, Mallet pressionou o conde D' Eu, que se postou ao lado do imperador e foi suavemente encaminhando-o para fora. "Não embarco a essa hora, não sou negro fugido", repetia D. Pedro II enquanto andava. Ao passar ao lado da mesa em que, um ano antes, havia assinado a Lei Áurea, a princesa Isabel deu-se conta da importância de seu ato libertando os escravos sem conceder indenizações aos proprietários.
"Talvez seja devido a essa lei que estejamos indo para o estrangeiro, mas se as coisas fossem repostas, não hesitaria em assiná-Ia novamente", disse a princesa, apontando para a mesa na qual havia mandado gravar no mármore a data de 13 de maio de 1888.No Largo do Paço, os soldados apresentaram armas e o imperador respondeu erguendo a cartola. O palácio fica a poucos metros do Cais Pharoux, mas Mallet havia providenciado uma carruagem para transportar os passageiros.
"Não preciso de carro, quero ir até o cais com Jaceguai e Mallet", disse o conde D'Eu. O imperador insistiu tanto que seu genro acabou entrando na carruagem também, onde se acomodavam a imperatriz, Isabel e Pedro Augusto, 23 anos, o neto mais velho do monarca, filho de sua filha mais moça, Leopoldina, falecida em 1871. "Os senhores hão de arrepender-se", disse ainda Isabel para Mallet. No cais, entraram todos numa lancha do Arsenal de Guerra, guardada apenas por quatro cadetes. Como a decisão de embarcar os Orléans e Bragança para o exílio fora tomada às pressas, ainda estava ao largo e despreparado para uma longa viagem o vapor mercante escolhido para levá-Ios à Europa. Da lancha, a família teve de ser encaminhada ao cruzador Parnaíba, onde aguardariam a chegada dos três filhos da princesa e só então navegariam para a Ilha Grande, para embarcar no Alagoas.
Foi um custo, na noite escura e chuvosa, encontrar o Parnaíba. Mais difícil ainda foi fazer D. Pedro II passar da lancha para o cruzador. Com o mar agitado, uma escuridão tenebrosa e uma precária escada ligando os dois barcos, Mallet e o conde Mota Maia, médico particular do imperador, tentavam empurrar D. Pedro II da lancha para o Parnaíba. De cima, alguém lhe dava a mão para puxá-Io, mas o imperador, de 63 anos, fraquejava e oscilava. Horrorizado, Mallet contemplou a hipótese de D. Pedro II cair no mar e julgou que seria praticamente impossível salvá-Io. O tenente-coronel contou depois que se o soberano caísse pularia no mar e só sairia com ele salvo. Preferia morrer a ser acusado de ter afogado o monarca. Mallet pediu que um cadete o empurrasse enquanto ele empurrava D. Pedro. Com o impulso, finalmente deu-se o embarque imperial.
O imperador permaneceu no tombadilho até às 10 horas da manhã, sentado sob uma lona que fora estendida para protegê-Io do chuvisco, até que seus três netos chegassem. Ao meio-dia, o Parnaíba começou a movimentar-se rumo à Ilha Grande. Foi uma viagem lúgubre, com os passageiros pálidos e soturnos. "Mas o que fizemos para ser tratados como criminosos?", perguntava a imperatriz Tereza Cristina ao embaixador da Áustria no Brasil, conde de Weisersheimb, que acompanhou a família real no cruzador para se despedir. "Não pense muito mal de meu país", afirmou Isabel ao austríaco. "Eles estão agindo como num acesso de loucura." Meio alheio aos acontecimentos, o imperador era o único que não demonstrava nenhuma emoção. "O meu maior desejo é ter noticia na Europa de que tudo se passou sem derramamento de sangue", afirmou ele ao despedir-se do comandante do Parnaíba para embarcar no Alagoas. Afora a família real, seguiram juntos no vapor - por amizade, e não por imposição republicana - o barão e a baronesa de Loreto, o conde Mora Maia, o barão e a baronesa de Muritiba e o engenheiro abolicionista André Rebuças, com quem o imperador se deleitava em conversar.
No Alagoas, o início de viagem foi relativamente calmo. D. Pedro II conversava com José Maria Pessoa, comandante do navio, tentava reconhecer os pontos da costa e raramente se referia à Proclamação da República. Recusou a oferta do comandante para que se alojasse no seu camarote, no convés, por recear o frio que iria encontrar no Hemisfério Norte, ligaram-se então dois camarotes de um andar abaixo e nele o soberano se alojou. O conde D'Eu e seu filho mais velho ficaram com os aposentos do capitão. O monarca continuava compondo seus dois sonetos todos os dias, que lhe eram lidos em voz alta pelo conde Mota Maia. O imperador só reclamava da lentidão da viagem, provocada pelo Riachuelo, o barco que o governo provisório escolhera para escoltar o Alagoas. Quando os dois navios chegaram à altura da Bahia, o Riachuelo deixou de escoltar o Alagoas. A única fonte de preocupação a bordo era o péssimo estado mental de D. Pedro Augusto, o neto predileto do imperador. Nervoso, o rapaz ofendeu e chegou a tentar estrangular o comandante Pessoa, além de padecer de insônia e delírios persecutórios.
Ao passar ao largo da Ilha de Fernando de Noronha, o último pedaço de terra brasileira avistado pelos passageiros, D. Pedro de Alcântara, o príncipe do Grão-Pará, de 14 anos, teve uma ideia. "Vamos soltar um pombo!", proclamou. Todos toparam. O imperador pegou um papel, escreveu "Saudades do Brasil", todos assinaram embaixo, e a mensagem foi amarrada num pombo para que ele a levasse até Fernando de Noronha. Esqueceram-se, no entanto, de que todas as aves, levadas a bordo para serem servidas nas refeições, tinham suas asas cortadas. O pobre pombo foi impelido por uma rajada de vento, mas logo caiu no mar, afogando-se com a mensagem "Saudades do Brasil" ante os olhos consternados dos Orléans e Bragança.
Durante a viagem, numa das poucas vezes que deixou de lado suas leituras de revistas científicas e compêndios de História para falar das circunstâncias em que foi apeado do poder, D. Pedro II disse coisas estranhas. "Se eu soubesse que as coisas tinham tamanha gravidade, teria me retirado para Minas Gerais", afirmou, referindo-se à sexta-feira, dia 15, quando ainda estava em Petrópolis.
É difícil acreditar nessa vontade de resistir, anunciada depois que os fatos estavam definidos. No calor da hora, apesar de informado, o monarca demonstrou não só que não tinha a mínima vontade de resistir como uma letargia inconcebível para entender o que estava passando e reagir. Na manhã de sexta-feira, ele recebeu o primeiro telegrama de Ouro Preto, informando da sublevação em São Cristóvão, e não fez absolutamente nada. Sequer o mostrou ao conde Mota Maia ou ao conde Aljezur, seu camarista, com os quais tomou ducha e passou toda a manhã, só depois do almoço, ao receber o segundo telegrama de Ouro Preto, contando que o ministério havia sido deposto, que D. Pedro II mandou preparar um trem especial para descer de Petrópolis para o Rio. "0 imperador veio lendo jornais e revistas científicas, declarando que tudo se arranjaria bem", conta Mota Maia.
Enquanto isso, no Rio, o conde e a condessa D'Eu, instalados no Palácio das Laranjeiras, estavam totalmente intranquilos Por volta das 10 horas da manhã, chegarão o barão de Ivinheíma e o visconde da Penha. "Estavam com ares esbaforidos", lembra o conde D'Eu. Os nobres anunciaram a revolta militar e o rumor de que o ministro da Marinha, o barão de Ladário, estava morto ou ferido. A partir daí chegaram dezenas de pessoas, até que o alferes Ismael Falcão contou que Deodoro e Quintino Bocaiúva estavam na frente do Quartel-General do Exército liderando os sublevados. "Nesse caso, a monarquia está perdida”, afirmou o conde D'Eu. André Rebouças e Alfredo D'Escramngolle, o visconde de Taunay chegou pouco depois ao Palácio das Laranjeiras com um plano concreto de resistência: o imperador deveria ficar em Petrópolis, cercar-se de figurões da monarquia e formar um novo governo para enfrentar a sublevação.
O conde D'Eu achou bom o plano. A dificuldade era entrar em contato com D. Pedro II em Petrópolis. Tentou-se o telefone, mas não se conseguiu. Temendo pela sorte dos filhos, D'Eu e Isabel os embarcaram para Petrópolis. Preparavam-se para acompanhá-Ios, horas depois, quando receberam um telegrama informando que o imperador já tinha partido de lá. O casal seguiu então para o palácio do Paço da Cidade e lá encontrou o monarca na maior placidez. "É tudo fogo de palha", dizia, que poderia ser resolvido "dissolvendo os batalhões" insubordinados. "Mas como o senhor quer dissolver tropas que estão contra nós? É preciso primeiro constituir um novo governo, pois o anterior se demitiu", disse-lhe o conde D'Eu. "Mas eu não aceito essa demissão" , cortou o imperador.
Ouro Preto finalmente chegou ao Paço e fez ver ao soberano que ele não tinha a mínima condição de governar. Foi então que Ouro Preto fez a absurda sugestão do nome de Silveira Martins para substituí-lo e Pedro II a aceitou. O conde e a condessa D'Eu acharam aquilo um absurdo, argumentando que o novo governo deveria ser formado imediatamente, que era impossível esperar por Silveira Martins e que se comentava que o novo governo republicano já estava formado. O imperador abalou quando lhe foi dito que a República, àquela hora, já podia ser uma realidade. "Se assim for, será a minha aposentadoria. Já trabalhei muito e estou cansado. Irei descansar", afirmou. Às 5 da tarde, o jantar foi servido normalmente, e D. Pedro II comeu sem atropelo. A princesa Isabel e seu marido fizeram tanta pressão que, pouco antes da meia-noite, o imperador consentiu em reunir o Conselho de Estado, o órgão consultivo do Império. O imperador aceitou a sugestão de que o conselheiro José Antônio Saraiva, que havia chegado da Europa naquele dia, fosse nomeado para o lugar de Ouro Preto. Já era madrugada de sábado, dia 16, e tudo estava perdido: Deodoro não aceitou Saraiva e o governo provisório foi constituído.
Às 10 horas da manhã do sábado, a situação mudou de figura no paço da cidade. A guarda foi reforçada e se proibiu a entrada e a saída do palácio. Mesmo assim, concebeu-se o plano de a família imperial fugir do palácio através de uma de suas portas secretas e refugiar-se a bordo do navio chileno Almirante Cochrane, o mesmo cuja oficialidade havia sido homenageada no Baile da Ilha Fiscal. "Fui repelido com indignação, o imperador não queria naquela emergência recorrer a estrangeiros", relata o conde D'Eu, que levou o plano de fuga a Pedro II. Prisioneiro só restava a espera à família imperial. Esperaram até às 3 horas da tarde, quando chegou o major Sólon com a ordem de que saíssem do país. Junto com o barão de Loreto, o imperador redigiu sua resposta, acatando a decisão. A princesa Isabel também redigiu a sua, principiando com a expressão: "É com o coração partido de dor que me afasto de meus amigos". Na sua resposta, o conde D'Eu deixou aberta uma fresta para entendimentos com os republicanos, dizendo que "estaria pronto a continuar a servir o país debaixo de qualquer forma de governo". A imperatriz Tereza Cristina e a princesa Isabel passaram o resto do sábado inconsolável, aflitas e até transtornadas.
Até o amargo fim, só D. Pedro II manteve a serenidade no paço da cidade. "Se tudo está perdido; que haja calma" recomendou a Taunay quando ele, emocionado, falou do desastre total da monarquia. "Eu não tenho medo do infortúnio." A calma de D. Pedro II não parece virtude de quem constata que não pode mais lutar. Parece, isso sim, a resignação de quem não tem mais vontade de lutar. Nos último anos, houve um progressivo distanciamento do imperador em relação aos negócios de Estado e ao governo do Império. Cada vez mais ele passou a se interessar por obscuras questões filosóficas e novidades científicas, deixando de lado a política. Há meses, o visconde de Taunay constatou que o imperador nem lia mais os jornais diários.
A esse progressivo alheamento se oferecia como perspectiva para a monarquia, a morte de D. Pedro II e a subida ao trono de sua primogênita, a princesa Isabel. Perspectiva bastante impalatável para a elite brasileira. Isabel é considerada, por muitos dessa elite, uma mulher fútil, que gosta de festas por demais clerical, dócil aos ditames de Roma. Paradoxalmente, a princesa é benquista pela massa do povo brasileiro, principalmente por aqueles que no ano passado foram libertados da escravidão. Tanto é assim, que multidões enormes se reuniram para ovacioná-Ia no Rio de Janeiro nos dias que se seguiram ao 13 de maio do ano passado. Mas a política brasileira, tal como era feita no Império recém-destronado, não se fazia com o povo. Era assunto de elite, de bacharéis e barões - de gente com renda o suficiente para poder votar.
Para essa gente, a perspectiva de ter em breve uma regente como Isabel, e um príncipe consorte como o conde D' Eu, era coisa intolerável. Num arremedo de golpe palaciano, houve conversas no sentido de fazer com que Isabel não fosse feita sucessora de seu pai. Nas intrigas palacianas, cogitou-se em, casuisticamente, fazer com que D. Pedro Augusto, o primeiro neto do imperador, passasse à frente da tia na linha de sucessão. A manobra não vingou porque a Constituição de 1824 é cristalina quando estabelece que é o descendente direto do imperador quem assume o trono em caso de morte. Foi talvez uma sorte que a articulação não tenha dado certo, dado o lastimável estado de nervos que Pedro Augusto demonstra em sua viagem para o exílio. O império findou sem que ninguém o defendesse ou chorasse. Acabou porque era uma forma de governo anacrônica, exaurida, incapaz de oferecer perspectivas de melhorar ao país, ampliando os direitos dos cidadãos. Agora, é a hora da República - do regime que pode democratizar o Brasil.
Fonte:
Pesquisa de equipe: Carlos NavarroAntónio Cunha (Zebra)Karen WoorfihsTorre ForteNeuma M. Figueiredo
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